Por afetos descolonizados e relações potáveis, público lota o Treze para ouvir Geni Núñez
A segunda noite de Livro Livre da 51a Feira do Livro de Santa Maria foi de palco lotado no Theatro Treze de Maio, assim como a plateia. Quem visualizava o local na noite deste sábado (24), tanto de perto quanto de longe, poderia até observar apenas duas cadeiras preenchidas com a presença da escritora Geni Núñez e da jornalista Liciane Brun, que conduziu o bate-papo com a convidada.
Bastou as primeiras falas de Geni para que, ali, naquele tablado onde todos olhavam atentos, ela trouxesse a presença de seus parentes do início ao fim de sua interação. Foi da plateia que alguém apontou que a escritora Guarani “vinha com muita gente”. Quem acompanha suas obras sabe que essa é uma prática constante na sua escrita: trazer a presença daqueles que a antecederam ou que caminham ao seu lado.
“Eu me emociono bastante ao citar e gosto muito de mencionar quem me torna possível no mundo. Em guarani, temos mais de um tipo de ‘nós’, então gosto de pensar que a própria gramática tem mais ‘nós’ do que ‘eu’ dentro desse campo.”, comentou Geni.
Não à toa que a poética de seu povo atravessa a sua escrita e oralidade, Geni iniciou sua fala ressaltando que esse é um dos traços mais importantes que carrega de sua origem: transmissão de conhecimento e preservação da memória por meio da fala.
Se hoje a escritora e psicóloga com doutorado em Ciências Humanas pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) é conhecida amplamente pelo seu livro “Descolonizando Afetos”, obra em que traz reflexões sobre as formas de amar através das perspectivas indígenas e contracoloniais, foi com um e-book infantil que Geni mobilizou recursos durante a pandemia para as comunidades guaranis.
Custando R$10, o PDF de Djantchy Djaterê, além de ser fonte de renda contra a precariedade no período do Covid-19, também apresentou aos leitores o Saci em sua origem: a guarani.
“Na época uma das grandes perguntas que me faziam era se essa entidade realmente existe. Eu ficava muito emocionada de dizer que, na época, meu trabalho não não tinha esse alcance, mas mesmo assim a gente conseguiu. Circulou tanto que eu respondia para as pessoas: ‘como que não existe se essa história está alimentando os nossos territórios e nos amparando neste momento?’. Essa dimensão política do meu trabalho nunca se perdeu de vista, porque é por esse propósito que a gente faz o que faz”, conta Geni.
Durante sua explanação, a psicóloga apresentou momentos de leitura de poemas, incluindo uma amostra do seu próximo trabalho, intitulado “Felizes por enquanto: escritos sobre outros mundos possíveis”, que entra em pré-venda na próxima semana. Por falar em mundos possíveis, Geni discutiu as práticas para a preservação da biodiversidade frente ao sistema de monocultura.
“A gente vê que hoje há todo um debate sobre o meio ambiente. Também já se reconhece que os povos indígenas são os guardiões da biodiversidade do planeta, mas isso não ocorre porque se nasce com um tipo de gene diferente por ser indígena, e sim porque o modo de vida, a forma como aprendemos a viver, não se baseia na dominação, no extermínio e na diferença. Portanto, a discussão que eu trago no meu trabalho é a de que, antes de simplesmente mudar as práticas das pessoas, é preciso repensar a ideologia que as inspira a ter essas práticas.”, comentou a convidada do Livro Livre.
A última pergunta vinda do público traduzia o questionamento de muitos presentes – ao menos foi o que o frenesi vindo das cadeiras entregou. Afinal, como lidar com o ciúmes ao buscar práticas não-monogâmicas?
“No meu trabalho, algo que tem feito sentido para mim, e até sonhei com essa palavra, foi a palavra ‘potável’. Eu fui pesquisar e depois vi que a água potável não é uma água sem toxinas, mas sim uma água em que as toxinas estão em um nível que não nos faz mal. Então, fico pensando que, mais do que esperar que não sejamos tóxicos a um certo nível, talvez seja mais interessante construir relações potáveis, onde reduzir os danos dessas sensações e associações possa ser um caminho mais promissor do que simplesmente almejar não ter esses sentimentos”, aconselha a escritora. .
Em palco, Geni finalizou sua participação acompanhada de sua parente Kerexu (nome indígena de Germania Acosta Pereira), da comunidade Guarani Mbya de Santa Maria, aldeia Tekoá Guaviraty Porã. Kerexu compartilhou com a escritora e o público um vídeo gravado onde a comunidade canta uma canção guarani.
“Eu gosto muito de receber (visita de outros indígenas). É a primeira vez que venho aqui (no Theatro Treze de Maio). Essa música é muito palavra forte e a gente se emociona. Por isso que a gente não faz a tradução”, explica Kerexu.
Texto: Nathália Arantes
Jornalista responsável: Letícia Sarturi (MTB 16.365) – BAH! Comunicação Criativa
Fotos: Ronald Mendes