sexta-feira, maio 17, 2024
Feira Do Livro 2019TODAS EDIÇÕES

PARA ELIANE, POR ELIANE

Contei dias regressivamente na ânsia de contar um sonho de anos que, hoje, somente um corredor estreito afastava de mim com a pirraça de seus poucos centímetros.  Eliane Brum não coube naquele auditório; eu mal preenchia a cadeira de onde escaneava cada um de seus outros traços, tão frágeis como os traços que bordaram cada palavra sentida por mim de cor.

Foram as únicas concessões, até a noite de hoje, feitas a mim pela mulher que transbordava em meu imaginário e que hoje, única e milimetricamente encaixada, se expusera inteira na vitrine embaçada dos meus olhos.

Minha personagem viva se mostrou do avesso para fazer desta noite um daqueles momentos em que o Jornalismo vale cada uma de suas entranhas à mostra. Repórter de “desacontecimentos”, para os quais restam as notinhas de rodapé da imprensa tradicional, Eliane é esculpida pela absurdidade da vida de seus personagens reais, capturados por seus olhos insubordinados e reinventados pela rebeldia de sobreviver à própria vida: “a palavra é meu ser e estar no mundo. Escrevo para não morrer e matar”.

Constituída no limiar entre a vida e a morte, a gaúcha de Ijuí renascia ao transformar dor em palavras descobertas a sete palmos da terra: “meu primeiro poema nasceu de minha angústia aos nove anos de idade; descobri que a escrita me dava outra chance de viver. E foi Luzia, mulher preta, quem nos tirou da cegueira das letras. À primeira professora de meu pai prestávamos homenagem todos os dias de finados. É a ela quem devo meu segundo parto, o das palavras”.

A jornalista mais premiada do país se dividiu entre memórias, política e questões socioambientais, borrando as fronteiras entre a ficção e uma realidade que, assim como ela, já não cabe em si mesma. Quanto ao futuro/presente do país, a expectativa ainda parece insistir: “a esperança é um artigo caro, do qual não podemos nos dar ao luxo. Mesmo assim, precisamos sorrir, nem que seja por desaforo”.

De ti vitral, Eliane, teus pedaços me cortam a carne crua, ainda e sempre sob teus efeitos. Sem estancar essa verborragia que sinto, que sangra e escorre. É a prova de que ainda estou viva.

Rúbia Keller, Jornalista