É VOCÊ MESMO QUE ESTÁ AÍ?: AILTON KRENAK LOTA AUDITÓRIO DO LIVRO LIVRE
O auditório do Colégio Marista Santa Maria lotou no domingo (08) para receber o escritor e ativista socioambiental, Ailton Krenak. Nem a chuva afastou o público de cerca de 600 pessoas que participaram da noite de Livro Livre para escutar e refletir com Krenak, autor das obras “Ideias para adiar o fim do mundo“, “O amanhã não está à venda“, “Lugares de origem” e “A vida não é útil”, onde compartilha reflexões sobre problemas socioambientais dos dias de hoje.
O escritor participou de forma online da Feira do Livro de 2021, onde manifestou a vontade de estar presente numa próxima edição, desejo realizado nesta edição. O bate-papo, mediado pela jornalista Vanessa Backes e pelo professor de filosofia Andrei Cerentini, durou mais de uma hora, onde Krenak iniciou a fala abordando a importância da humanidade tratar de forma coletiva os impactos ambientais que vem sofrendo num contexto de produção capitalista.
“Quando a gente se predispõe a um encontro desses, é um exercício de pensar o mundo. Um exercício de pensar como nós criamos uma condição global em que os humanos estão definitivamente se perguntando até quando podemos reproduzir esse modo de consumir e de se reproduzir socialmente, culturalmente, no mundo. Pode ser na Europa, na China, Japão, Estados Unidos. A pergunta é a mesma. De certa maneira isso implica a gente começar a pensar juntos. Não tem mais jeito de pensar separado”, frisa.
Krenak comentou sobre seu ato em 1987, quando, participante da Assembleia Nacional Constituinte, em 1987, o líder indígena, ao discursar na tribuna, pintou o rosto com a tinta de jenipapo, utilizada nas cerimônias de luto, para protestar contra o retrocesso na luta pelos direitos indígenas. O ativista falou sobre o fato de, até 1988, os brasileiros se imaginavam num território sem presença indigena no território, tendo a discussão histórica e política sido reinserida na fala a partir de 1988, incitando falas violentas.
“De 88 para cá muita coisa mudou no nosso país inteiro. Mudou na nossa realidade social, política. Nem sempre as mudanças são lineares. Elas não acontecem assim: foi bom e continua sendo bom. Foram boas e ao mesmo tempo produziram experiências muito traumáticas, inclusive no campo da política. Se a constituição de 88 rompeu com uma longa história de invisibilidade dos povos nativos do Brasil, trazendo essa gente para a problemática social do Brasil, significa que o Brasil foi agregado num contingente de povos que hoje são 305 etnias, que fazia de conta que eles não estavam presentes e, botaram eles para dentro de casa e se perguntaram: e agora, o que vamos fazer com eles?”, comenta Krenak.
O autor também insere em sua fala a questão da sustentabilidade, como parte positiva de um desenvolvimento, ser uma falácia. Para ele, não tem nada que a gente possa produzir, dentro do sistema fordista, que reproduz, que fabrica, que seja sustentável.
“Nós precisamos rever a ideia de desenvolvimento e também esse adjetivo sustentável. Desenvolvimento por si, já diz o que é. Como diz um amigo da etnia Mbyá guarani, lá da Serra do Mar, as pessoas precisam aprender a se envolver com a vida, ao invés de querer desenvolver a vida”, alerta.
Um dos momentos mais emblemáticos da noite ficou por conta de estudantes e lideranças indígenas de Santa Maria que realizaram uma manifestação direta à Krenak, pedindo também por uma mensagem para os estudantes indígenas que estão na universidade enfrentando violências, preconceitos e racismo.
“Eu começo saudando você. Fico muito feliz em ver o auditório lotado para ouvir você, já que a sua voz faz ecoar a nossa voz, já que normalmente a sociedade não indígena escolhe poucos de nós para conseguir dar espaço de fala, e a gente consegue fazer nossa voz ecoar por esses poucos que nos representam muito e que nos dão muito orgulho. Para nós é uma felicidade muito grande vê-lo”, saúda o estudante universitário Xainã Pitaguary.
“Olha que experiência mais rara. Os nossos parentes de várias etnias estão integrando esse corpo de discentes da universidade, constituindo, talvez, os mais privilegiados indígenas a ocupar esse lugar recém aberto das instituições de ensino superior. Há 20 anos atrás, a UnB estreou a abertura de um programa de mestrado indígena em desenvolvimento sustentável. Aquilo era vanguarda das universidades brasileiras em abordar as questões indígenas, trazendo para dentro da universidade pessoas com essa diversidade cultural que está representada por vocês. Talvez isso pode ser considerado um desafio suficiente para vocês se sentirem a vanguarda de uma experiência social em que, as pessoas que estão recepcionando vocês aqui também são desafiadas. Que é reconhecer as diferenças de vocês e saber conviver com essas diferenças”, respondeu Krenak.
Ao complementar a resposta, o ativista cita uma tradição do povo Xavante que é sempre perguntar para as pessoas “é você mesmo que está aí?”. Segundo ele, essa é a pergunta mais importante de fazermos para os outros, sendo um bom começo para mudarmos a ideia de que somos todos iguais.
“Naquela cosmovisão, naquela cultura, você muda. A pessoa que encontrei ontem, hoje e amanhã, pode não ser a mesma pessoa. Olha que coisa maravilhosa. Nós somos tão convencidos que, ao encontrarmos um desconhecido no corredor, o tratamos como um irmão. Quando você chega em qualquer instituição, antes de você achar que as pessoas sabem quem é você, comece perguntando para a pessoa: – é você mesmo que está aí?”, sugere.
Ao fim do Livro Livre, Krenak recebeu representantes dos povos indígenas para uma conversa e trocas de experiências. Cacique Kaingang, Natanael Claudino, destaca a importância da presença do ativista em Santa Maria
“Eu acho que a visibilidade dos indígenas de Santa Maria, creio eu que isso [presença de Krenak] é um ganho para nós. Não só em questão de visibilidade, mas em questão da sociedade nos enxergar da forma que tem que nos enxergar: como indigena mesmo. Bem importante o convite que foi feito a ele e ele ter aceito, muito agradecido pelas falas dele. As comunidades [indígenas] só têm a ganhar com a visita dele. Brasil é terra indigena. Santa Maria também é terra indigena”, expõe a liderança.
A antropóloga e professora universitária, Jurema Brittes, destaca a importância da permanência da comunidade indigena na universidade.
“Ailton realmente é um dos maiores filósofos do Brasil. Acho maravilhoso que a UFSM esteja aberta para 18 etnias, mas nós precisamos que o sistema Sisu permaneça, se não essa abertura vai se extinguir. Não é só recebê-los, nós temos muito que aprender com essas outras cosmologias que vivem tão melhor com o planeta que nós”, sugere.
POR UM FUTURO ANCESTRAL
Ainda pela manhã do domingo, o escritor concedeu uma coletiva para cerca de dez profissionais da comunicação. Na oportunidade, Krenak falou sobre seu novo livro, Futuro Ancestral e comentou sobre a sua felicidade por oferecer aos jovens uma maneira de entender melhor o mundo.
“Eu não penso no futuro como algo que se estende nesse momento agora para o depois. Eu penso no futuro como agora, então é o presente. Eu estava pensando no presente, como nós humanos estamos perdendo o equilíbrio com tudo que a gente chama de natureza. E como a gente está perdendo esse equilíbrio, estamos terminando numa espécie de abismo cognitivo. As coisas que organizamos para estar no mundo estão se mostrando ineficientes”, destaca.
Questionado sobre nossas inflexões, como humanidade, após o fim da pandemia, o ativista reflete sobre desejos e a nossa ilusão quanto à capacidade humana de dominar o acontecimento das coisas.
“Nós estamos começando a realizar os desejos. Na pandemia a gente queria estar juntos, sair do lugar confinado e poder olhar uns aos outros. A gente conseguiu realizar isso. Talvez seja interessante a gente acreditar que a possibilidade de realizar os desejo, ele já está semeado quando a gente consegue pensar em alguma coisa melhor. Alterando a ideia que tem coisas que a gente faz, que a gente realiza, que a gente pode acreditar também em coisas que vão acontecer independente da gente fazer. Nós vivemos em um tempo onde as pessoas que são consideradas exemplares, são as pessoas fazedoras. Isso pode ser uma ilusão. As coisas podem estar acontecendo sem aquele sujeito que faz”, reflete Krenak.
Nesta segunda-feira (08), o Livro Livre segue com show de Pão de Queijo e Chimarrão – Diego Dias e Veco Marques. Os ingressos gratuitos estão disponíveis para retirada na bilheteria do Theatro Treze de Maio.
Fotos: Ronald Mendes
Texto: Nathália Arantes – acadêmica de jornalismo da UFN
Jornalista responsável: Letícia Sarturi (MTB 16.365) – BAH! Comunicação Criativa